Jeremias nasceu na rua das Carquejeiras, no Porto.
Tal como os outros rapazes, nascidos nas primeiras décadas
do século XX, costumava brincar naquela zona, onde avós, mães, tias, subiam a
longa e penosa rampa, carregadas de carqueja, para alimentar a cidade, que
delas fazia questão de se esquecer, na sua miséria.
Entre as suas brincadeiras, Jeremias gostava também de
observar a paisagem, com alma de poeta. Aliás, esta era a sua alcunha, o
"Poeta". Aquela paisagem do deslumbrante rio Douro, recheada de
mistério, fascinava-o.
Mas era a ponte D. Luís, o elemento de eleição do pequeno
Jeremias. Não só pela sua imponente beleza, mas sobretudo por causa de um
acontecimento que se repetia sempre no mesmo dia, anualmente.
Desde que se conhecia, Jeremias lembrava-se de ver uma
velhinha, que naquele determinado dia, descia, todos os anos, à ponte, onde
pendurava uma pequena pomba de papel.
Jeremias observou várias vezes o ritual da velhinha, de tal
forma, que acabou por fixar o dia preciso.
Por volta dos seus dez anos, o rapazinho resolveu
aproximar-se da velhinha, no momento em que ela, com as suas mãos já muito
trêmulas, atava na grade da ponte, um cordel que tinha na ponta a pomba
branca feita de papel.
- Desculpe... Porque está a pendurar uma pomba de papel
aí?
Com um terno sorriso, enquanto terminava de dar o nó, a
velhinha respondeu ao garoto.
- Faço isso desde o meu primeiro ano de vida. Nos primeiros
anos, vinha pela mão do meu pai, mas conforme fui crescendo, passei a vir
sozinha, todos os meus aniversários, pendurar uma pombinha branca, para que
esta me realize o desejo, assim que o vento a leve a voar por esses céus
imensos.
- Desejo? – perguntou o menino, com o olhar a brilhar de
curiosidade.
- Sim, peço à pomba que me traga uma única coisa, que quem a
tiver, tem tudo na vida.
- O que é?
- É paz, meu pequeno, paz... − respondeu a velhinha, com uma
festa no cabelo desalinhado do Jeremias.
E assim, a velhinha retomou o caminho de volta ao morro, no
seu passo lento e corcovado, apoiada numa tosca bengala, enquanto que o
Jeremias, ainda ficou, um bom pedaço, a ver a pomba a baloiçar com o
vento.
No ano seguinte, Jeremias voltou à ponte, onde esperou a
velhinha, que viria pendurar a sua pomba branca.
No entanto, as horas passaram e a velhinha não
apareceu.
Jeremias soube então, que a poucos dias de completar o seu
centésimo aniversário, a velhinha tinha voado para a sua eterna
paz. Faltava uma pomba a para completar o bando, que ao longo de um
século, tinham voado, uma a uma, da ponte D. Luís, para se juntarem a algures,
na terra dos desejos.
O pequeno Jeremias não quis deixar o bando incompleto e,
nesse dia, amarrou ele próprio uma pomba de papel, na grade da ponte.
Quando terminou o nó, o menino olhos para o lado e encontrou
uma pomba branca verdadeira que, passado instantes, bateu asas e voou em
direção ao céu dourado pelo sol, onde se juntou a um numeroso bando.
Jeremias sorriu e, a partir daquele dia, passou a
pendurar, todos os anos, uma pombinha de papel na grade da ponte, continuando a
ser assim o ritual da Velhinha das Pombas da Ponte D. Luís.
Rita Micaelo Silva
2020
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