domingo, 2 de outubro de 2022

A Velhinha das Pombas da Ponte D. Luís

 


Jeremias nasceu na rua das Carquejeiras, no Porto. 

Tal como os outros rapazes, nascidos nas primeiras décadas do século XX, costumava brincar naquela zona, onde avós, mães, tias, subiam a longa e penosa rampa, carregadas de carqueja, para alimentar a cidade, que delas fazia questão de se esquecer, na sua miséria. 

Entre as suas brincadeiras, Jeremias gostava também de observar a paisagem, com alma de poeta. Aliás, esta era a sua alcunha, o "Poeta". Aquela paisagem do deslumbrante rio Douro, recheada de mistério, fascinava-o. 

Mas era a ponte D. Luís, o elemento de eleição do pequeno Jeremias. Não só pela sua imponente beleza, mas sobretudo por causa de um acontecimento que se repetia sempre no mesmo dia, anualmente. 

Desde que se conhecia, Jeremias lembrava-se de ver uma velhinha, que naquele determinado dia, descia, todos os anos, à ponte, onde pendurava uma pequena pomba de papel. 

Jeremias observou várias vezes o ritual da velhinha, de tal forma, que acabou por fixar o dia preciso. 

Por volta dos seus dez anos, o rapazinho resolveu aproximar-se da velhinha, no momento em que ela, com as suas mãos já muito trêmulas, atava na grade da ponte, um cordel que tinha na ponta a pomba branca feita de papel. 

- Desculpe... Porque está a pendurar uma pomba de papel aí? 

Com um terno sorriso, enquanto terminava de dar o nó, a velhinha respondeu ao garoto. 

- Faço isso desde o meu primeiro ano de vida. Nos primeiros anos, vinha pela mão do meu pai, mas conforme fui crescendo, passei a vir sozinha, todos os meus aniversários, pendurar uma pombinha branca, para que esta me realize o desejo, assim que o vento a leve a voar por esses céus imensos.

- Desejo? – perguntou o menino, com o olhar a brilhar de curiosidade. 

- Sim, peço à pomba que me traga uma única coisa, que quem a tiver, tem tudo na vida. 

- O que é? 

- É paz, meu pequeno, paz... − respondeu a velhinha, com uma festa no cabelo desalinhado do Jeremias. 

E assim, a velhinha retomou o caminho de volta ao morro, no seu passo lento e corcovado, apoiada numa tosca bengala, enquanto que o Jeremias, ainda ficou, um bom pedaço, a ver a pomba a baloiçar com o vento. 

No ano seguinte, Jeremias voltou à ponte, onde esperou a velhinha, que viria pendurar a sua pomba branca.

No entanto, as horas passaram e a velhinha não apareceu. 

Jeremias soube então, que a poucos dias de completar o seu centésimo aniversário, a velhinha tinha voado para a sua eterna paz. Faltava uma pomba a para completar o bando, que ao longo de um século, tinham voado, uma a uma, da ponte D. Luís, para se juntarem a algures, na terra dos desejos. 

O pequeno Jeremias não quis deixar o bando incompleto e, nesse dia, amarrou ele próprio uma pomba de papel, na grade da ponte. 

Quando terminou o nó, o menino olhos para o lado e encontrou uma pomba branca verdadeira que, passado instantes, bateu asas e voou em direção ao céu dourado pelo sol, onde se juntou a um numeroso bando. 

Jeremias sorriu e, a partir daquele dia, passou a pendurar, todos os anos, uma pombinha de papel na grade da ponte, continuando a ser assim o ritual da Velhinha das Pombas da Ponte D. Luís. 

 

Rita Micaelo Silva

2020 

Sem comentários:

Enviar um comentário